De repente, quatro vagões de trem tombam, espalhando cal pela rodovia que corre ao lado dos trilhos. Por sorte, ninguém se fere. Entretanto, o descarrilamento do trem de 29 vagões ocorrido domingo, dia 20, na cidade de Castro Alves, no Recôncavo, atrai o olhar para a malha ferroviária baiana, cuja história remonta ao século XIX e está inteiramente ligada à trajetória econômica e social do estado.
A concessionária Ferrovia Centro-Atlântica (FCA), que administra as linhas férreas de carga ativas na Bahia, é a atual gestora de uma estrutura que começou a ser implantada em 1853. Foi quando teve início a construção do primeiro caminho de ferro do estado, da Bahia ao São Francisco. O objetivo era ligar Salvador ao porto fluvial de Juazeiro, na margem do Rio São Francisco.
A ferrovia, que só teve seu projeto concluído 43 anos após o início das obras, integrava a capital ao Norte do estado, onde, através da navegação no São Francisco, chegavam as mercadorias de estados vizinhos. Assim, produtos manufaturados e a cana e o fumo produzidos na Bahia podiam ser transportados com mais rapidez.
“Nesse período, começaram a ser construídas as primeiras ferrovias no Brasil, por causa de uma luta dos comerciantes, que precisavam fazer suas mercadorias circularem. Antes, tudo era transportado no lombo dos animais”, explica Antônio Guerreiro, professor de História Regional da Universidade Federal da Bahia (Ufba).
O pesquisador também enfatiza que, no final do século XIX, o Brasil era fortemente influenciado pela Inglaterra, detentora de tecnologia ferroviária e também interessada em vender equipamentos para investidores brasileiros, ainda na época do Império.
Beleza
Concluída em 1896, a Estrada de Ferro da Bahia ao São Francisco tinha aproximadamente 540 quilômetros, passando por cidades como Alagoinhas e Senhor do Bonfim. No ponto final, Juazeiro, ergueu-se uma das mais belas estações de trem do Brasil, de acordo com publicações da época.
O espaço contava com mosaico de ladrilho italiano no térreo e mármore chinês no pavimento superior. Madeira de lei dava o tom das escadarias do imponente prédio, fincado de frente para o Rio São Francisco, justamente para que as águas refletissem a bela fachada.
A importância da obra para aquele momento pode ser notada pelo texto do jornal Gazeta de Petrópolis de 22 de fevereiro de 1896, ainda com o português da época: “A inauguração da estação do Joaseiro deve produzir uma grande revolução econômica. Essa localidade vai se tornar o centro da relações comerciaes com as regiões visinhas de Pernambuco, Ceará, Piauhy, Goyaz e Minas Geraes”.
Para tristeza do professor Antonio Guerreiro e de quem sabe da importância do patrimônio, a estação foi demolida na década de 1950 para dar lugar à cabeceira da ponte Presidente Dutra, que liga Juazeiro a Petrolina (PE).
“Esse foi só um exemplo do processo que passamos no século XX de dar prioridade ao transporte rodoviário e ao carro individual, abandonando o transporte ferroviário, que tem custo-benefício melhor”, critica Guerreiro.
Caminhos Antes que as ferrovias fossem postas em segundo plano, outras linhas históricas cortaram a Bahia. A segunda a ser construída foi a Central, interligando Salvador e Recôncavo a Minas Gerais, passando por cidades como Santo Amaro e São Félix (no último dia 23, o Ministério Público Federal ajuizou ação contra a União, requerendo a imediata restauração da Estação Ferroviária de São Félix).
A obra da Ferrovia Central começou em 1872 e a ideia era que ela alcançasse a Chapada Diamantina, mas faltaram recursos técnicos e financeiros para romper os morros da região. Então, entre Itaberaba e Iaçu, o jeito foi desviar e seguir rumo a Minas. “A Chapada formava uma barreira natural. Era muito difícil abrir um túnel para o trem passar”, explica Antonio Guerreiro.
A partir de 1917, a estrada de ferro a Centro-Sul passou a ligar as duas anteriores. A nova ferrovia, que se estendia entre Senhor do Bonfim e Iaçu e era percorrida pelo Trem da Grota, servia para transporte de carga e passageiros, mas foi desativada em 1976.
“Todas as localidades tiveram a vida impactada de alguma forma pela chegada da estrada de ferro. (…) Seja no aluguel de animais, na montagem de casas comerciais ou na exploração mineral, a ferrovia deu novo ânimo a alguns setores sociais da região”, apontou o historiador Aloisio Santos da Cunha no seu trabalho de mestrado intitulado Descaminhos do Trem: As Ferrovias na Bahia e o Caso do Trem da Grota (1912–1976).
Na dissertação, porém, Cunha deixa claro que a chegada das ferrovias não era sinônimo de chegada da riqueza para todos: “Mesmo com tantas transformações, as condições socioeconômicas da maioria da população não se alteraram, mantendo-se a grande massa de miseráveis na mesma situação de antes. Para essa fatia da sociedade, a modernidade do trem servia para levá-los para longe do sertão e das secas”.
Extremo Sul
Fora da malha principal do estado, uma quarta ferrovia de destaque foi construída. Trata-se da Bahia a Minas, que começou a ser aberta em 1881 para ligar a Serra dos Aimorés, em Minas Gerais, ao litoral do Extremo Sul baiano, em Caravelas.
Assim como a Central, essa linha não teve sua ideia original concretizada, já que o objetivo era que fosse ligada à Ferrovia Vitória-Minas, o que nunca ocorreu. Desativada em 1966, a Bahia a Minas só se mantém viva nos versos da música Ponta de Areia, de Milton Nascimento e Fernando Brant: “Ponta de areia ponto final/Da Bahia-Minas estrada natural / Que ligava Minas ao porto ao mar/Caminho de ferro mandaram arrancar”.
Antes de mandarem arrancar, esse caminho de ferro, junto com os outros principais da Bahia, passou para a gestão da Viação Férrea Federal do Leste Brasileiro, a Leste, criada em 1935. Mais tarde, em 1957, o governo federal criou a Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA), cuja função exclusiva era administrar e melhorar a malha ferroviária da União.
Não deu certo e o sistema foi ficando cada vez mais sucateado. Até que, no processo que o Ministério dos Transportes chama de “desestatização”, todas as ferrovias federais foram disponibilizadas para concessão. Na Bahia e em estados vizinhos, a malha está desde 1996 sob a gestão da FCA, que agora apura as causas do descarrilamento do seu trem cheio de cal na cidade de Castro Alves.
Estação em Camaçari abrigou bar; em Dias D’Ávila, está abandonada
Da malha ferroviária ativa, o CORREIO foi conferir o trecho entre Simões Filho e Dias D’Ávila, passando por Camaçari, na Região Metropolitana de Salvador. Nas três cidades, há sinalização nas passagens de nível, mas motoristas dão “roubadinhas” em locais proibidos e é comum ver pedestres perto dos trilhos. De acordo com a assessoria da concessionária FCA, são realizadas campanhas para orientar a população a “manter a convivência harmônica com a linha férrea e evitar acidentes”.
Além disso, a empresa garante que são feitas operações para fechamento dos cruzamentos ilegais, que, em seguida, são reabertos. Em Simões Filho, a estação abriga um escritório da FCA, mas em Camaçari e Dias D’Ávila os espaços estão fechados. Na primeira, havia um bar até oito meses atrás. “Ficava cheio, com mesas na plataforma”, conta o comerciante Carlos Melo.
Segundo a FCA, o espaço não está mais sob sua gestão desde 2005, tendo sido devolvido à União. “Antes dessa data, a FCA havia ajuizado uma ação pedindo a remoção do bar devido a questões de segurança”, informa em nota. Já em Dias D’Ávila, a estação teve os vãos das portas fechados com alvenaria. “Estava servindo para usarem droga. Ninguém dá manutenção”, afirma Marcos Guerra, dono de uma empresa defronte ao espaço.
Ainda responsável pelo equipamento, a FCA afirma que ele foi desativado por não apresentar função nas atuais operações e que a empresa avalia destiná-lo a outras atividades de interesse público, através de convênio com o governo federal. A malha operada pela empresa na Bahia tem 1.626 quilômetros de extensão, transportando madeira, fertilizantes, cobre e outros minerais. Em 2013, segundo a empresa, o custo total de manutenção foi de R$ 16,7 milhões.
Projetos visam modernizar e ampliar estradas de ferro
Em 1893, lembra o historiador Antônio Guerreiro, a equipe do então governador Rodrigues Lima definiu o transporte ferroviário como principal vetor para desenvolvimento da Bahia. Na época, foram elaborados projetos que nunca vingaram, como uma ferrovia entre Porto Seguro e Bom Jesus da Lapa e outra entre Ilhéus e o Rio São Francisco. Essa teria traçado semelhante ao que agora ganha forma com a Ferrovia de Integração Oeste Leste (Fiol), obra do governo federal que está em curso, com investimento de R$ 6 bilhões.
A estrada de ferro, quando concluída (após sucessivos atrasos, a previsão é dezembro de 2015), terá 1.527 quilômetros, ligando Ilhéus, no Sul da Bahia, a Figueirópolis, no Tocantins. Ali, a linha será entroncada com a Ferrovia Norte Sul, que cortará o Brasil do Pará ao Rio Grande do Sul.
Além disso, estão previstos novas linhas para o estado no Programa de Investimentos em Logística (PIL), lançado pelo governo federal em 2012. De acordo com o Ministério dos Transportes (MT), a Bahia será contemplada com quatro trechos que, juntos, totalizam 2.957 quilômetros: Feira de Santana–Ipojuca (PE), Feira de Santana–Parnamirim (PE), Manoel Vitorino-Candeias e Guanambi–Belo Horizonte (MG). Mas os trens ainda tardam a andar.
Os trechos estão em fase de estudos e só após aprovação do Tribunal de Contas da União é que serão leiloados. Depois de escolhidas as empresas que vão realizar a obra e gerir as ferrovias, o prazo de construção é de cinco anos. Ainda segundo o MT, nos trechos em que hoje existem ferrovias com traçados semelhantes, a malha será substituída por estrutura mais moderna.
Fonte: Corrreio da Bahia